sáb. jun 7th, 2025

Blockchain: entenda a tecnologia que passa a fazer parte da vida de empresas, governos e indivíduos

E prepare-se: as mudanças trazidas pelo blockchain não serão indolores

Dolfi Müller, prefeito da cidadezinha suíça de Zug, lembra-se bem do dia em que dois nerds apareceram na prefeitura com a ideia de criar ali um “Criptovale”. Pensavam numa espécie de Vale do Silício da criptografia e da tecnologia blockchain. “Esse OVNI aterrissou na cidade em 2013”, conta o prefeito, usando o avistamento de discos voadores como metáfora para seu assombro. “Inicialmente, não reagimos. Criptovale? Blockchain? Nem sabíamos o que era isso. Dissemos: ‘Ok, algo novo’.” Os nerds em questão eram uma dupla chamativa — o sul-africano Johann Gevers, extremamente ruivo, alto e magro, e o dinamarquês Niklas Nikolajsen, que cultiva cabelo e bigode ao estilo século 17, ambos criadores de startups. Instalaram-se em Zug com o objetivo de criar um ambiente perfeito para microempresas do segmento em que atuavam. Aos poucos, aconteceu. Startups de vários países começaram a chegar, espalhando-se num raio de 30 quilômetros. As primeiras foram Monetas (a empresa de Gevers), Bitcoin (onde trabalha Nikolajsen), Ethereum, Tezos e Xapo. Hoje, há cerca de 200 empresas na área.

Empresários e executivos que ainda ficam intrigados com a tecnologia, assim como o prefeito de Zug se sentiu em 2013, precisam começar por algumas características fundamentais da novidade. Pode-se pensar em blockchain como estruturas fundamentadas em criptografia para criação e troca de ativos. Isso, num banco de dados público (verificável por qualquer interessado) e supostamente inviolável (pode-se fazer cópias, mas não adulterações).

Pessoas, entidades e ativos (físicos e digitais) podem ser representados, identificados e negociados nesse ambiente. A depender do blockchain usado, em especial aqueles públicos (como Bitcoin e Ethereum), as transações ficarão registradas. Atos desses indivíduos e organizações — como comprar um bem ou violar um contrato — podem disparar instruções imediatas para outras partes interessadas. O conceito vem sendo testado desde os anos 90, amadureceu nesta década e se tornou popular com a criptomoeda bitcoin — no fim das contas, um exemplo muito restrito de uso da tecnologia.

O potencial da novidade iniciou uma corrida do ouro a aplicações em todos os setores. Como em qualquer corrida do ouro, há dois tipos de empreendedores — os que garimpam ouro e os que vendem ferramentas para o garimpo. No Brasil, dois dos garimpeiros são Eduardo Carvalho e Fabio Asdurian, fundadores da Dynasty (leia mais sobre eles no quadro nesta reportagem). A empresa se propõe a organizar investimentos imobiliários transnacionais, com o uso da tecnologia. Se o conceito funcionar, investidores poderão ganhar com compra, venda e aluguel de imóveis em qualquer lugar do mundo, de forma bem mais simples que a atual.

 

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Entre os que vendem ferramentas de garimpo, destaca-se Rosine Kadamani, fundadora da Blockchain Academy. A empreendedora tem experiência de 12 anos como advogada no escritório Pinheiro Neto, um dos maiores do país. Ela e seus sócios oferecem aulas sobre o tema, cada vez mais concorridas. Já receberam funcionários de organizações tão diferentes quanto a Oracle, o Banco Votorantim, o Insper e a Polícia Federal. “Em oito horas, você consegue entender o assunto e sair conversando com consultores”, afirma. “Blockchain toca em direito, tecnologia, negócios… então, o advogado, o desenvolvedor e o empresário precisam saber mais a respeito.”

Muitos empreendedores, mundo afora, pensaram o mesmo que Rosine. Por isso Zug, a cidade suíça que antes abrigava multinacionais da indústria farmacêutica e executivos de paletó e gravata, foi invadida nos últimos anos por outra tribo — os jovens de jeans e tênis discutindo ideias mirabolantes. Até o dia em que o conselho da prefeitura, formado por cinco pessoas, de cinco partidos diferentes, acordou: o Criptovale era realidade.

No fim de junho de 2018, a cidade abrigou mais um evento internacional sobre o tema, a Conferência sobre Tecnologia Blockchain do Criptovale. Em março de 2019 é a vez do CV Summit. Zug, com seu lago, vista idílica para os Alpes e a mais famosa torta de cereja da Suíça, virou um hub mundial de startups e experimentadores da tecnologia mais celebrada do momento. Em julho de 2016, a prefeitura local tornou-se a primeira do mundo a aceitar bitcoins — decisão unânime dos cinco conselheiros, que nem consultaram os burocratas locais, “para não atrapalharem”, segundo o prefeito. No ano passado, a cidade se tornou pioneira ao oferecer a seus 30 mil habitantes uma identidade digital baseada em blockchain. Pode ser usada, por exemplo, para tomar um livro emprestado na biblioteca. Apenas 160 habitantes a adotaram. Mas o prefeito Müller acredita que é só questão de tempo para a difusão.

A mudança não será indolor. Blockchain não é um banco de dados tradicional, sob os cuidados de um único guardião. Adeptos mais radicais da tecnologia buscam o ideal utópico: um mundo digital descentralizado e seguro, onde todos têm participação e controle. Os nerds do blockchain não escolheram Zug por acaso. A cidade tem os impostos mais baixos da Suíça, e o país se encaixa num ideal dos adeptos do cripto: neutro, descentralizado, democrático, liberal e seguro. O apelo é fortíssimo entre especialistas identificados com o movimento cypherpunk (ativistas da privacidade e do direito do indivíduo ao controle de seu rastro digital). Além disso, blockchain promete dizimar intermediários de todo tipo — o que pode incluir tabeliões, banqueiros e advogados, a depender de como trabalhem.

Sonho grande demais? O Fórum Econômico Mundial de 2018, em Genebra, alertou para o crescente número de “evangelistas tecnológicos” com expectativas infladas — pessoas que acreditam no blockchain como solução para tudo, da desigualdade financeira global ao combate da censura de governos. Conceitos para lá de ousados surgem em sequência. Alguns dão certo. Ativistas estudantis da China do movimento  #MeToo, que protestam contra abuso sexual, recorreram à tecnologia para contornar a censura do governo. Uma estudante colocou uma carta denunciando abusos na plataforma de blockchain Ethereum. A transação custou US$ 0,52. Outro cidadão fez uma denúncia relativa ao uso de vacinas de má qualidade. Como no blockchain tudo é copiado, distribuído e um dado não pode ser alterado sem que outros saibam ou aprovem, o governo chinês não tem como alterar nem apagar as denúncias. Qualquer um com acesso à plataforma pode ver.

Como na chegada da internet nos anos 90, a promessa de mudança é radical e não respeita limites entre setores — o impacto vai da agricultura à indústria cultural. “Isso vai afetar todos os negócios”, avalia o secretário da Economia de Zug, Matthias Michel. “Por isso, temos de ajudar as empresas nessa virada tecnológica.” Zug não ajuda companhias com dinheiro, avisa o secretário, mas sim facilitando a vida dos nerds para que operem sem entraves.

A Suíça não corre sozinha. Empresas e governos preparam-se para uma disputa tecnológica. A IBM participou como fornecedora de serviços de mais de cem projetos de blockchain no mundo. O UBS, maior banco da Suíça, estima que o blockchain pode acrescentar entre US$ 300 bilhões e US$ 400 bilhões à economia global até 2027. Os bancos experimentam a tecnologia para se reinventar. O dinamarquês Søren Lemvig Fog, fundador da startup Iprotus e um dos pioneiros do Criptovale, lembra-se de como foi mal recebido em 2013, quando visitou bancos e propôs que eles usassem blockchain para oferecer bitcoins aos clientes. “Fui tratado como terrorista!”, conta. Hoje, bancos participam dos eventos do Criptovale.

O UBS criou um “Laboratório de Inovação” em Londres e lidera várias iniciativas de blockchain. A tecnologia força bancos a colaborarem entre si. Seis deles (Deutsche Bank, HSBC, Natixis, Rabobank, Société Générale, UniCredit) lançaram uma plataforma para facilitar o financiamento de pequenas e médias empresas para o comércio internacional. No Brasil, Bradesco e Itaú já fizeram testes conjuntos. Por meio da Febraban, associação do setor, 17 entidades acompanham as experiências.

“Temos de colaborar. Se todo mundo optar por tecnologia própria, não vamos chegar a lugar nenhum. Nossos grandes concorrentes não são os bancos, mas sim os Gafa — os Google, Apple, Facebook, Amazon, Alibaba”, diz Anja Bedford, que comanda a divisão de blockchain do Deutsche Bank, o quarto maior da Europa. “Isso vai mudar os bancos”, reconhece a executiva. “Mas por que fomos criados? Para emprestar dinheiro e tirar o risco do mercado. Em uma operação financeira, é preciso confiar que o dinheiro será pago. É por isso que os bancos estão intermediando: fornecemos o financiamento.”

Søren, o empreendedor da Iprotus, acha que os bancos ainda subestimam a mudança que terão de enfrentar. “Antes, bancos eram o lugar onde colocávamos tudo o que tínhamos de valor. Com blockchain, isso pode não ser mais necessário. Mas temos outros valores que podem ser entregues aos bancos, para que preservem com segurança — por exemplo, nossos dados privados.”

A Comissão Europeia lançou em dezembro 2017 um concurso chamado “Blockchain para o bem comum”, que vai premiar com € 5 milhões quem apresentar o projeto mais inovador que tenha impacto para a sociedade. O financiamento sai do programa Horizon2020, de incentivo à inovação, e o resultado sai em 2020. A Suécia testa blockchain em registros imobiliários. A Estônia, em bancos de dados de saúde. A Irlanda vai lançar o seu Criptovale. E a Espanha elabora uma lei de incentivos fiscais para atrair empresas de blockchain, de olho nas ofertas iniciais de moedas (ICO, na sigla em inglês) e nas vendas de tokens, identidades digitais e vales digitais para acesso a bens e serviços.

Especialistas, empresários e adeptos veem desafios pela frente. Os órgãos reguladores não mudaram. Seja lá o que for feito no blockchain, um banco central ainda poderá exigir um papel assinado. Nos Estados Unidos, agências reguladoras, como a SEC (responsável pelo mercado de capitais), começam a reprimir as vendas de tokens, alegando que muitos deles equivalem a ações negociadas em bolsa. Além disso, algumas redes não permitem transações com blockchain em grande escala. Mas esses entraves podem ser negociados ou resolvidos. Pelo seu impacto potencial, o blockchain terá de passar mesmo é por outro tipo de obstáculo, muito maior — uma transformação filosófica, para uma cultura de trabalho e modelos de negócio mais descentralizados, cooperativos e transparentes.

 

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